27/10/2014

Morrer é fechar uma porta que nunca esteve aberta

Martim abriu os olhos de repente, aterrorizado: tinha que se levantar e dar corda aos relógios! Não podia perder tempo, era para isso mesmo que tinha tantos, uma rede de ponteiros para não deixar escapar um único segundo.

E que agora tinham parado. O silêncio tenebroso era demasiado expressivo, demasiado intenso, não o queria, nunca o quis, precisava de dar corda aos relógios. Não o tinha conseguido fazer quando os ouviu parar, graças ao peso dos seus noventa e dois anos, que o levou a falhar uma ronda pela primeira vez, mas talvez agora que tinha morrido conseguisse.

Levantou-se com uma facilidade que não se lembrava de alguma vez ter tido e olhou em redor. Relógios, parados, com contornos difusos e esbatidos contra um fundo acutilante. A janela, fechada, quase invisível. E na cama, deitado, ele próprio. Velho, muito velho, e tão parado como os seus relógios.

Sentiu-se triste. Sozinho. Só ao olhar para si próprio percebeu o quão patética se tinha tornado a sua vida. Mais velho que velho, a gastar a maior parte das suas forças a dar corda a uma galeria imensa de relógios, preso na ilusão daqueles ponteiros todos, mas sem se preocupar em dar corda a si próprio.

Quis chorar, mas os ecos não choram, apenas repetem. Lembrou-se então de como era chorar. Fixou o olhar no seu corpo imóvel rodeado de lençóis e lembrou-se de sentir as emoções à flor da pele, as lágrimas a acumular e a caírem pelo seu rosto abaixo.

Chorou sem verter lágrimas, da mesma forma que existia sem viver. E não conseguiu evitar o destino de qualquer eco: repetir-se até desaparecer. Lembrou-se de mais coisas, cada vez mais intensas, cada vez mais próximas, mas antes de desaparecer tomou uma decisão.

Esforçou a memória para sentir a solidão que tinha sentido antes de morrer, e isso deu clareza aos relógios. Depois obrigou as mãos a lembrarem-se dos movimentos precisos para darem corda a um relógio, e começou a percorrer a casa, tique atrás de tique, taque atrás de taque. Começou a lembrar-se do barulho de cada um dos seus relógios e sorriu o mesmo sorriso de quando comprou o primeiro relógio, a verdadeira relíquia da colecção.

Quarenta minutos depois, tal como mandava o hábito, chegou ao último relógio a que tinha de dar corda. Sentou-se na beira da cama e encostou as mãos ao peito do seu corpo imóvel, e sentiu o coração a falhar como se estivesse a passar por tudo outra vez. Inspirou fundo, gritou o grito que tinha ficado perdido, e deu corda.

14/10/2014

12h35



Os relógios pararam às 12h35, deixando por toda a casa um eco silencioso. Cerca de setenta aparelhos espalhados pelas várias divisões a quem os ponteiros congelaram de repente e para toda a eternidade. Aos noventa e dois anos, Martim já não tinha força para se levantar e dar corda aos velhos relógios que tanto estimava e colecionara durante toda a vida. Deitado na cama, lembrou-se do primeiro que comprara, aos vinte anos, quando terminada a tropa regressava à sua cidade-natal, os bolsos mais cheios do que quando partira, e passando num relojoeiro – um relojoeiro à séria, daqueles que se dedicava de corpo e alma ao negócio, não um destes charlatães de hoje em dia – viu na montra o mais lindo relógio de que tinha memória.

Era todo esculpido em madeira, um único bloco trabalhado dias a fio com um cinzel, os ponteiros e o pêndulo feitos em prata, onde mandou o gravar o seu nome de família “da Veiga”. Colocou-o no centro da sala de estar, que nesse tempo não estava reservado a televisões, para que as suas visitas o pudessem admirar e nunca se atrasassem nos seus compromissos. Valia-lhe sempre os mais valiosos elogios “que lindo relógio”, “uma verdadeira relíquia”, pelo que Martim se apaixonava todos os dias pela peça, ao ponto de procurar o relojoeiro para lhe fazer uma outra, ao mesmo nível da primeira, que pudesse trazer sempre consigo.

O segundo relógio pendia assim de uma corrente em ouro. O mostrador era em veludo azul, no qual repousavam os ponteiros, duas delicadas patas de borboleta. Não tinha números, em vez disso fora esculpido no ouro uma marca para cada quarto de hora e um minúsculo diamante indicava as doze.

Tornou-se tradição. Uma vez por ano Martim da Veiga pegava nas suas poupanças e fazia visita ao relojoeiro. Não queria saber de férias, que considerava uma perda de tempo – para quê sair de casa quando tudo o que precisamos está aqui? – nem de grandes luxos. O dinheiro que tinha gastava-o no que mais gostava, os seus relógios. Aos noventa e dois anos, cerca de setenta aparelhos de todos os tamanhos e feitios espalhavam-se pelas divisões, ora pendurados nas paredes, ora pousados em mesas, cómodas e estantes, relógios de pé encostados a um canto, outros de pulso guardados em caix­as e bolsas de couro, relógios com numeração romana ou ocidental, com todos os números ou sem nenhum. Relógios em ouro, prata, madeira ou latão, tudo valia desde que o relógio fosse bonito – só havia um tipo de relógio proibido, os relógios digitais e a pilhas, tudo o que fosse plástico, barato e fácil de estragar. Não, relógios queriam-se era à antiga!

Assim, duas vezes ao dia, Martim perdia quarenta minutos a dar corda aos relógios, uma assim que se levantava e outra antes de se deitar. Era um hábito quase tão importante como escovar os dentes ou lavar a cara, e Martim percorria todas as divisões sem se esquecer de nenhum aparelho, dando-lhes corda com o mesmo carinho que dera no dia da sua compra.

Naquele dia dos seus noventa e dois anos Martim da Veiga não conseguiu, no entanto, levantar-se para dar corda aos relógios. Sentia-se extremamente cansado, e apesar de ter tentado, várias vezes, sair da cama, parecia faltar-lhe a força nas pernas. Deixou-se ficar, ouvindo o tique-taque que pouco a pouco foi esmorecendo, à medida que também aos relógios iam as forças. Às 12h35 congelou o último ponteiro, e a casa ficou mergulhada em silêncio. Era uma coisa tenebrosa: sem o murmúrio dos setenta relógios, que durante toda a sua vida tinham preenchido a casa, o espaço parecia incrivelmente vazio, como se de repente se tivessem despido as paredes, e aberto um poço tão profundo que não se via o fim.

O velho começou a sentir-se terrivelmente só.

Nunca até então se tinha sentido assim, como se lhe faltasse qualquer coisa por dentro, como se também a sua voz se fosse com o calar das engrenagens. Abriu a boca para gritar, mas sentiu que o ar lhe faltava. O que se escondia por trás da sua porta?, pensou.

Respondeu-lhe o silêncio. Tique-taque, apenas o seu coração batia.

O que se escondia por trás da sua porta? (Tique-taque.) O que se escondia no silêncio e que o mecanismo dos relógios (tique), o cantar dos cucos e o bater dos pêndulos tinham ocultado tanto tempo? (Taque.) O velho abriu a boca para gritar, mas saiu-lhe apenas um suspiro, o último sopro da sua vida. (Tique…)

A hora da sua morte ficaria para sempre congelada nos cerca de setenta relógios espalhados pelas várias divisões da sua casa; 12h35.

05/10/2014

Sozinho

Quando acordou não imaginava que ia morrer ao fim do dia. Levantou-se e fez a sua rotina normal, como se tivesse uma vida, uma década, um ano, um mês, uma semana, um dia pela frente. Saiu de casa e fez o caminho do costume, estava Sol, um dia bonito, disse os seus bons-dias e ouviu os dos outros, sorriu, assobiou, respirou, sentou-se.

Ouviu a chefe, ouviu os colegas, ouviu os clientes, não reteve nada. O seu trabalho era ouvir, não era lembrar. Ouvia, respondia, ouvia, respondia, ouvia, respondia, sempre tinha funcionado e sempre iria funcionar, para quê forçar outra coisa?

Um telefonema. Acabou de chegar do almoço com alguns colegas, durante o qual distribuiu piadas e gargalhadas como se se quisesse ver livre delas. O telefona toca a sua hora, e ele atende-o a toda a hora, é esse o seu trabalho, mas com aquele telefonema pensou duas vezes.

O telefone tocou da mesma forma, nada aconteceu de diferente. Excepto a percepção que ele teve. Não ouviu o telefone, ouviu a urgência de quem estava do outro lado, a urgência de quem precisa de falar, a urgência de quem acha que está a lidar com a morte.

Atendeu. O pai morreu, diz a irmã, chorosa, urgente, sem perceber. Desliga o telefone, a irmã continua a chorar e a não perceber, não dá conta. Ele continua a falar com clientes, porque percebe, sabe que o pai não morreu, a irmã apenas acha que sim. Se o pai tivesse morrido, ela não tinha urgência nenhuma, para quê sentir urgência com a morte, com os mortos? Não vão a lado nenhum.

Saiu do trabalho já com o Sol fora de vista, e ligou o telemóvel. Tinha-o desligado para não ter que ouvir mais ninguém que não percebia. O meu pai morreu, o teu pai morreu, ele era o meu tio favorito, gostava tanto dele, quem me dera ter passado mais tempo com ele, o teu pai morreu.

Ignorantes, todos, todos, todos. Inúteis. Não percebiam. Mas ele sim. Ele foi até ao cruzamento do costume e virou para a rua errada, andou ao ritmo errado, procurou pela casa certa. Bateu. Tocou. Abriram e entrou.

O meu pai morreu. Oh meu deus oh meu deus oh meu deus, estás bem, o que é que aconteceu, como é que te sentes. Voz urgente, tom urgente, sentimentos urgentes, pessoa urgente, pessoa ignorante. Não, também não percebia. Por muito amiga que fosse dele, também não percebia. Não percebes, o meu pai morreu, mas tu não percebes, não percebo o quê, não percebes, não dizes coisa com coisa, não preciso, o meu pai morreu.

Saiu, a amiga ligou à irmã dele, choraram as duas, não ligaram ao comportamento dele, está em choque, não aguentou, não atende o telemóvel a ninguém. Enquanto isso ele saiu da casa certa, ao ritmo certo, em direcção à rua certa e chegou a casa. Deixou-se cair na poltrona e agarrou na fotografia que estava na mesa ao lado, olá pai, olá filho, morreste, não morri nada, eu sei, eles não percebem, pois não, só tu meu filho, só eu, só eu, só eu, vem ter comigo, vem tu, não posso desmorrer, nem eu posso desviver, mas podes morrer.

Largou a fotografia, foi buscar uma faca, saiu um garfo, deixou-o cair, tirou uma faca, agora sim, voltou à poltrona, não escreveu bilhete, não pensou duas vezes, espetou-a no coração, que também não pensou duas vezes e morreu. O pai morreu e agora o filho, e a fotografia caiu, encheu-se de sangue, não era uma fotografia, era uma folha em branco.