08/07/2014

Assunto: Não sei que diga...

De: Rui
Para: Beki
Data: 06/07/2014 às 00:42

Cheguei agora a casa. Envio-te também a transcrição do guardanapo que encontrei hoje. Estava num armário nos laboratórios de som e imagem, fui lá falar com esse tal Sneaky e aproveitei para dar uma vista de olhos e encontrei isso e...

Desculpa lá os atropelos gramaticais, mas não estou em mim. Já tentei eu próprio ligar para a Alice, mas bati na mesma parede: uma mensagem gravada a dizer que ela está nas Maravilhas. Não sei quando foi a última vez que falei com ela, mas lembro-me da conversa como se tivesse sido ontem. Deve ter sido uma ou duas semanas antes de te encontrares com ela.

Não tínhamos combinado nada. Dei com ela numa feira de livros usados, muito concentrada a admirar um livro volumoso de mil oitocentos e qualquer coisa sobre ervas medicinais. Comentei casualmente que mais valia tomar uma aspirina e abrir o Google, mas ela começou a barafustar que eu não entendia, que ninguém entendia, e parecia pronta a esborrachar-me o nariz com o calhamaço quando se apercebeu de quem eu era.

Se conseguisse descrever satisfatoriamente a fúria que lhe vi no olhar e a forma como esmoreceu e se apagou completamente, escrevia um livro. Foi como ver uma onda prestes a abater-se sobre nós a revelar-se uma fina parede de neblina. Fiz um qualquer comentário sarcástico e convidei-a a dar uma volta por ali. Ela pareceu mais cansada do que nunca, largou o livro e acedeu.

Agora não me perguntes como, mas acabamos a debater a necessidade de um ser divino não precisar realmente de existir para ser real. Eu nem sei bem como fomos parar a isso, mas também nunca sei como é que as minhas conversas com a Alice fluem. São sempre fascinantes, isso sim.

O que interessa é que no fim usei um argumento de que ela não gostou. Qualquer coisa como "se existe algum tipo de deus, como é que não há nenhuma prova?" Começou a aumentar o tom de voz, a gesticular, a ficar vermelha, vi a fúria a ressurgir nos seus olhos claros e antes de ter hipótese de a acalmar, ela virou costas e desatou a correr por uma ruela. Escusado será dizer que com aquela agilidade de bailarina rapidamente a perdi de vista e nem tentei correr. Liguei-lhe no dia seguinte, mas ela limitou-se a desligar-me o telefone na cara.

Assumi que se tinha chateado e deixei andar. Vi-a algumas vezes na rua, mas ela ignorou-me de todas as vezes. Não liguei mais ao assunto, que tenho pouca paciência para estas coisas, e já me tinha esquecido do assunto até ler a tua história. Peguei logo em mim e fui à faculdade dela tentar encontrar esse tipo, o Sneaky, que não me disse nada de novo mas que me deixou dar uma vista de olhos à procura de nem sabia eu bem o quê. Encontrei o guardanapo, rabiscado e rasgado num canto. Já fui a todos os sítios que ela costuma frequentar e só consegui encontrar pessoas que a viram pela última vez há cerca de um mês.

Não sei o que achar! Mas acho muito estranho que depois da nossa conversa ela te tenha dito que tinha algo para te mostrar e depois tenha ido buscar um microfone. Tenho medo que ela tenha feito alguma loucura, Beki. Achas que ela se terá atrevido a tentar? Nem tenho coragem de o dizer. Ainda tens a chave da casa dela? Podes lá ir e ver se... Se o livro ainda lá está? Depois diz qualquer coisa e tem cuidado.

Rui Bastos

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